POEMA DA CONSTELAÇÃO
– equívocos de todo dia
bronze na forma impossível
de uma sílaba
As intemperanças crônicas
– perfil de pântano
em abraço frívolo
e pouco sal
Os arranjos esconsos
– degraus de vento
repentinas esquinas
sem ângulo sem luz
As divagações viagens
– doença insistente
que se quer adiante
e se recurva no eixo
Os apelos traídos
– perversos adeuses
com asas de terra
a ferir este corpo
As moendas velhas
– substância triturada
que se busca no sumo
e sonda o caos
voltados pra dentro
saltando no escuro
colam malsãos
no mesmo perfil
(1989)
ÁGUA EM LINHA VERTICAL
A chuva se esgueira
nas árvores
Quem sabe um barco na rua
uma uva na calda
uma taça no cristal tímido
A chuva desliza
nos troncos
nó marrom de ponto morto
casca de ferida velha
caminho de inseto anônimo
cada folha
corpo silente no porto
violão resgatado no silêncio
palavra com palavra – e não diz
O aflito el passeante
Enrijece seus olhos
Na casa de paisagem nua
Está só bem no centro
e no centro uma gota
e nos muros tantos nomes
(1989)
CIGARRA
Morta
a cigarra na pedra
reluz
brusca intermitente
no seio da hora
– o silêncio do meio-dia
Morta
a cigarra é vítrea
corruptela
de asas – não leva transparência
nenhum volume
nenhum som
Morta
é o parêntese interrompido
deixada num porto
no pátio da imensa sala
– é hora alongada
múscuo dissolvido em febre
pera petrificada
que vira silêncio
(1989)
TUA AVENTURA
Se levantas o manto
num assombro
vais perceber que a areia floresce
num afago excessivo
num medo de perfil
não composto à luz
Se relutas no olhar
teus dois focos intervêm
como paralisia
e desta o contato estéril
anima a formação de fungos
onde repousavas
Cambiante livre de requintes
modelas postura ereta
e fincas a garra no horizonte
Ali linhas fugidias se aninham
e é sempre uma promessa
lance rápido de sortilégio
ver alguma coisa fenecer
(1989)
CANÇÃO DA QUEDA
E ponho na minha aurora
o cadeado de Yeats
A noite consumida
no nervo de única palavra
Depois o piano submerso
o dente frio no sol
a boca fria qual musgo
A mão avança ainda crente
e nenhuma massa se modela mais
Nada nada que vale
o tom cobiçado
nem uma brasa a arder
no escuro romper dessa espera
Nem a forma de um querer possível
nisso tudo tão névoa inóspita
O corpo é que se encolhe
impossível ao espaço estreito
e deita sua seiva nessa areia
Só ele sabe quanto é vão
reter a luz numa sílaba
mesmo que minha
(1989)
ANIMAL OBLÍQUO
Grande o animal convexo
desfila seu segredo
entre o enigma de todo olho
Quem o lê não sabe o núcleo
Quem o vê consome um intruso
em sintonia com astro rude
Rupestre sua paralisia balança
na fosforescência do elo
Seu contorno é porcelana
é o antigo papel do alfabeto
A razão não chegou ali
Mescla tinta caroço haste
para um episódio encarnado
Se o condenam sua ira é bíblica
vago evangelho atraiçoado
em pregação mais assombro que tema
As termas de suas escarpas
espreitam pra dar em acalanto
Seu buril avança em labirinto
Acende o candeeiro como motim
E no charco sua graça resfolega
e pra muito se ergue em pose
A singularidade é sua matéria
mesmo que plural mais pareça
(1989)
TODA ESSA HORA
Toda essa hora é lenha
fugaz alternativa
de sombra em sombra
tecendo o som – sempre o som
O acesso a qualquer labor
é como cápsula que explode
entre um sangue e outro sangue
e abriga tanto monstro
quanto é o início do mundo
alicerce de ferro e corte
que interpõe entre um episódio
e outro a chegada: nada
não valeu não rendeu não deu
A caligrafia da carne
só se supõe alfabeto no
contato breve com outro calor:
fusão transfusão desdobram
caminhos
transportam síntese
(1989)
SINGULAR NO PLURAL
Vento rústico dos rostos
gesto banal que irrompe das mãos
com réplica intermitente nos olhos
Vento célere e áspero
da pele ácida e povoada
pela memória resistente dos fatos
Vento náufrago forasteiro dos desejos
restaura a posição vertical
põe a palavra em alerta
Vento casual vento largo
do menino de têmpera magnética
a avançar em quilha
pela cidade que passa
órfica veemente
na doce desintegração
(1989)
Ah esse saxofone
no veludo da noite
serpente célere
procurando as cavas do corpo
(1989)
ATRÁS DA TREVA
Atrás da treva
a pedra gane
Pelos caminhos obscuros
vai o animal
e as asas de escamas
não cintilam
mesmo lívidas
A rebelião das garras
não faz sentido
não inaugura o princípio
Atrás da treva
a temperatura morna
define os entraves
que roem o animal
E ele morre em cólera
abatido pela escalada
impossível a todo nômade
(1990)
HOMENAGEM A MARLY DE OLIVEIRA
senão no contato das mãos
ou no ventre que a alma
pouco a pouco avoluma
Palavras medos percepcões
expiram pela distância
pelo modorra comum
tal como meu devaneio
Porém
há vastíssimas páginas
esperando a leitura
e há o abismo dos sentidos
que o tempo transforma em ouro
(E a insistência dos deuses
aleitando nossa teimosia)
(1990)
BRIGADA DE UM SONÂMBULO
Rumina
apenas o caroço da luz
em sistema de dança
Reaparece
diante dos olhos vagos
que perseguem a sombra
Relembra sobre a vozes da rua
as cartas não cifradas
Refaz
com a mente em brasa
o primeiro contato
Reduz
a rutilância do revelado
à lembrança refeita
outra vez
(1990)
A faca rola no ar
Espasmos de brilho
fio de corte célere
sinistra matéria
Atinge a carne
e o sulco ferve
nervos e músculos
estertoram
antecipando o grito
Detida na mão
antes de objeto e mancha
limpa na terra na areia
deixa entre o ferido
e o globo
um estranho vínculo
sem qualquer fulgor
(1990)
OBJETO NUCLEAR
Tenho ainda alguns minutos
antes da meia-noite
algum som de alarme
daquelas regiões doutros lugares
doutras manhãs outros ares
Antes da noite se remexer
e confundir seus aposentos
em que pulsa um objeto central
por quem já cortei tantos mares
Antes do umbral da noite
fica de tocaia a atmosfera
esta tela de amplo resíduo
Antes do gole e do coice
nesta lapa para ficares
a celebração não vai além
deste gesto no próprio corpo
Começar e terminar nas caldas
da mesma carne com avidez
de fruto precário
dançar na mesma vertigem
que é plantar idêntica cunha
em cava de lavra íntima
tudo dano se não ficares
a manter dons de oráculo
para o triunfo de teus cantares
(1990)
TARDE 15 HORAS
1.
Às 3 da tarde
o sino é um buraco
soluço metálico
O adejo de andorinhas
risca lugares no espaço
É nada
– breve chumaço
O álcool do azul
A esfera da cidade
O olho do gato
O andar da esfinge
O veludo das sombras
A enguia das esquinas
Nas aspirações da tarde
um sonho inusitado
Apenas 3 horas
3.
A questão não é saber
a origem
nem sequer o fim
é saber se se permanece
entre um nada e outro nada
O olho da tarde
nessas 3 horas
é petúnia invertida
a colher sombras
4.
Repentina vertente de cor
escorre do centro do mundo
aos lábios desta rua
a amarelar o ir o vir
Nela uma caravana passa
e das marcas dos pés renasce
o obelisco infalível
são 3 horas
nada mais
Ouve-se o silêncio
em guarda pelas paredes
À medida que os pincéis trabalham
e o branco da tela multiplica-se
na voz disforme de novas formas
o quadro fervilha mudo
e tudo diz
no afinco das 3 horas
6.
Medo de ficar
perpetuamente em torno de si
Medo de ir
perpetuamente dentro de si
Entre o plano de voo
e a planura da Terra
seu corpo às 3 horas
seu jeito às 3 horas
O coração a olhar pelas frestas
dos olhos a olhar
os ciganos caminhantes
7.
Hefesto
medonho trincado
modelado em ferrugem
sonha armeiro e escultor
Já atrás do paraíso
vê com clareza o roteiro
ao som do tempo e das nuvens
a elaborar no assombramento
a sagaz forma do arrebatamento
em récita-luz das 3 da tarde
8.
Resta dizer
que o logro dos olhos
aflora à pele
na cadência inversa
de todos os livros lidos
as insinuantes teorias
abortivas da alegria
mães de oceanos nunca atravessados
Ao sabor do impasse
às 3 da tarde o sol abrasa
e acachapa os fantasmas
Não há qualquer interrogação
nem dúvida nem anseio
9.
Gira hora verde na praça
espera aprisionada em
morna atitude
Gira na fosca primavera
a querência de ir
e até de ficar
do ritmo sem corpo
no corpo das 3 horas
10.
Névoa sibilina
As setas moles da palmeira
pastoreiam os vidros da janela
Em torno da mesa
feito artólatras embriagados
eles sondam o pão
e na fenda-mãe despencam
a gula
Gotas translúcidas
encrespam a vidraça
às 3 em ponto
Março é marco
11.
Entre brumas
de montanhas verdes
o jovem K ama o úmido
Ao contemplar a casa exótica
adentra a vida do arquiteto
Deixara alguns incidentes por aí
Provocaria outros ao som
de eruditos filamentos
Às 3 de uma tarde fria
ele perderia o chão
ao cavar na carne
a saudade do doce flautista
12.
A ária não solene
mesmo que contundente
mostra a força do vazio
de todas as vidas
E em contraste com as 3 da tarde
quando o sol outonal
rouba do cinema todas as cores
espraia-se da sacada à rua
Ao enovelar-se nas poucas pernas
de quem anda na polpa da rotina
revela o soturno tato
dos fantasmas corroendo
os corpos que vêm
os corpos que vão
O garoto lê Sylvia Plath
à espera do ônibus amarelo
Nos olhos dele alguma torre se ergue
e ele nada sabe da nuvem além
Lê que há sacanagem na cozinha
enquanto as batatas chiam
e tenta-se a todo custo
meter Hollywood no trivial caseiro
Ele não sabe o que faz
Às 3 da tarde
seu olhar é gato azedo
a atrever-se entre arames e tijolos
Tudo tine enquanto não é possível
se ver noutra vida
Entre as coxas
a ereção floresce para ninguém
A boca seca mastiga lascas de pedra
14.
Olham-se convictamente vagos
Apalpam-se veludamente indefinidos
e assim o mundo gira
e o coração deles conhece todos os meandros
que passam pelos astros
e chegam ao tépido úmido das raízes
Sonham-se concretamente anjos
Nutrem-se angelicamente corpos
e pelos ares deles passeia um fluido
todo luz e todo sombra e todo amaro
e todo veneno e todo aconchego
até que às 3 da tarde irrompe o real
Boca na boca
mão na mão
Fica no espelho o último vestígio
do que nunca será
Diante da morte
tudo está nivelado
O sal vale o açúcar
O açúcar conduz o rio
O rio referve a montanha
A montanha eclipsa o homem
O homem retorna à pergunta
em pleno sol das 3 horas
A sombra imperiosa
se faz mais ainda longa
se faz mais ainda larga
Todos nos sabemos aqui
Todos nos perdemos depois
A inteligência de Nil
esgueira-se pela casa
como gato italiano
com saudade do cio
Lá pelas 3 ele sairá
para um suco na esquina
Volta aos livros
aos meandros saudáveis
dos tantos labirintos
modo único e justo de ser
À noite recolhe-se ao seu corpo
enlanguecido maltrata as estrelas
expõe nas mãos a raiz frutificada
e espera porque segunda-feira virá
A canção cavalgada
segue pelo ancoradouro
rumo ao mar da noite
Ninguém ouve seus passos
ou o vento que ela reserva
aos deuses e touros adventícios
Pelas plagas de água funda
ela voa cadenciada
e ergue em pleno oceano
a glória transparente
que o dia teve
no afinco brando das 3 horas
Relicário de prata
sob o vento
fausto de sombra
que faz fortuna
na irradiação opaca
a transformar as 3 da tarde
em pomo noturno
Charco de fertilidade
minério real sem fraude
os olhos de Nil
amadurecem em papoula
e ainda deixam pelo ar
a labareda depuradoura
do ajuste final
19.
O sustentáculo das 3 horas
é esta cigarra anômala
com seu esguicho
de silêncio vítreo
desde as nuvens
até a rosa podre do jardim
Ai de mim
diz ela transviada
dos dezembros
à toa entre palmeiras
de setembro baço
20.
de um engraxate da praça
simples como este voo intermitente
de um pássaro cego no ar
simples como a lombada de um livro
muito lido por isso muito amado
simples como a curva de um rio
como um copo brilhando ao luar
como a vidraça nublada pela névoa
Ele é simples
e nesta tarde
simples como as 3 horas
que fervem em si
todos os entrecruzamentos
21.
A madrugada inteira a tecer
a aranha canta sua fragilidade
que brilha
na vidraça ampla da sacada
O nó irisado das 3 horas
relembra no vidro
a nitidez e chispa
o contorno da cidade
O fulguramento balança
e o bicho tenta alimentar-se dele
na crença vã
de tudo ter captado
(1991)
Rios silenciosos sobre as planícies
deslizam devagar
Carregam em seus espaços
asas de voo lento
Feras de plumas e garras
irmanam-se no mesmo sangue
Botam seus ovos parem filhotes
com o esgar carnal
dos rios mansos
A Terra delicia-se
com o manjar líquido destes animais
Espraia-se pelas fronteiras deles
sonhando os tempos e as lavouras
A Terra sabe silenciosamente conhece
o secreto êxtase da simbiose
e no seu torrão úmido
recama a pequena vitória
entre tantas terras
(1992)
ANGUS WILSON
No instante preciso do pleniluna
Simon Carter recosta-se na árvore
à espera do texugo
Contempla no chão o olho da toca:
circunferência irregular
desenho de sal em areia dispersa
Virá a mulher com o cão a tiracolo
interromper vigília tão acurada?
Que será do naturalista amanhã
quando após o desmonte
precisar alimentar-se de gordura
mel silvestre
alho da terra
em torno da tara de um camponês sanguinário?
No instante preciso
um xadrez vegetal
banha-se em luz sobre seu rosto
As folhas de negror verde
refazem as camadas da noite
raio por raio
nuvem por nuvem
vazaluna
A observação do homem de ciência
antecipa a queda dos animais
no cansado ritmo das pálpebras
De repente
em cada olho
anula-se a circunstância
Simon adivinha Marta
mina implodida
à sombra da águia
(1992)
PEQUENO TRATADO DA HORA
1.
Diante da manhã
o frio espesso dos lábios
coloca no hálito
sílabas aéreas – massa transparente
em movimento de fuga
para que nada dure no ficar
2.
o calor espesso dos lábios
coloca no hálito
sílabas aéreas – líquido fervente
em movimento de retomada
para que nada fique no ficar
(1992)
CONTORNO
Palimpsesto
gravado no espelho
Ali o rosto em mil camadas
desvenda-se ato por ato
Um gesto cambiante quase revela
o contorno da paisagem singular
Laborioso o tempo
depositou a simetria no espelho
E o rosto nômade
desfolha-se para registrar
e deixa vulnerável
a matéria da feição:
traço a traço – tudo já foi
(1992)
ZEN
As palavras fazem o homem
Palavra e homem são necessários
para haver homem
para entender o homem
Homem e palavra são necessários
para haver palavra
para entender a palavra
(1992)
PENSAR O INÓCUO
O sorriso cego diz bruma
fazendo pântano
com imagens de involução
centro onírico de terrores
Um músculo aberto na face
– magma de ruas
espaço de multiplicação
revigora lembranças
a textura da sede da falta
O corpo arqueja sob a luz
alheia-se na teia feroz
distende pela planície
único impulso de bater na mesma fome
A ferrugem alicia a juventude
O projeto toma sombra
corrói sua medula
(1993)
PARA NIL
Esta beleza aérea e tão concreta
Esta catedral silenciosa
no músculo que se estira
Este leve esboço de paraíso
onde o homem é pouco mais que homem
Este mesclado de sargaços e asas
denso como bebida de sol
Este escavatório plano de moléculas
que se juntam e sonham
novo mar de véspera
para acontecer e alongar-se
no murmúrio do século
(1993)
NAVEGÂNCIA
Os barcos não se soltam pra navegar
apenas pra trazer nos cascos
e cristalino de ondas
Revelam a massa da beleza
e põem no gesto do mundo
o exercício de voltar
(1993)
CIRCUITO
O sono espatifa-se na vidraça
Nenhum som dá prosseguimento
ao sonho
(1993)
DO CENTRO DA TUA RAIZ
Dorme contigo
o vazio movente do nada
Calma amigo
cada músculo é capaz
de amamentar o mundo
também de matar
a massa vaga que se avizinha
O azul da tarde
logo é cinza
e assim será
Abate a fera com um discurso
com ferrões pulsantes
Qualquer dia entrega os pontos
e nem vais ficar com a linha
(1994)
SONATA DA CHUVA
A chuva envolve a cidade
Manto cinza
Arfas no mesmo ardor
No peito treze cavalos de western
Em dia como hoje
goteiras cantam
sob pegadas úmidas
Detrás do encanto
uma sonata de Schumann
atravessa as paredes
Nem confessas o sabido:
a trepidação de hoje
acolhida pela água
antecipa o fluxo de amanhã:
a presença disfarçada
(1994)
SOLÁRIO
pousa o amarelado no chão
Beira as estantes
ameaça apagar as lombadas
Sua transfusão transparente
lembra um desses lagos
de antigamente
Protegidos tínhamos a felicidade
no respaldo que merecíamos
De que adianta agora
cavoucar matéria de tal ilusão?
Único refúgio
os livros impõem sua presença
e assim alargam adensam
qualquer coisa inextinguível
no indefinido
(1995)
CORTE
Há infinito espaço
no corte do punhal:
roseiral de carne ferida
longos cais da percepção
e anêmonas
a varrer rua
passam
Há um brinde em mil
entre o corte e a gota
suada do rubro cetim
a morte à espera
verde na epiderme
de toda fera assanhada
Como um traço no papel
o corte brisa a vida
entre o aço e o ácido
e a fala amara rouqueja
atiça a vesperal de ida
se põe a falsear
pra última vez dizer
adeus ou nunca mais
(1995)
SAUDADE
Só a ferida
assim pulsando
fluente
mantida luminescente
escrava de seu contorno
Só a ferida
falando
incontida
da falta da falta
que vibra
como um peixe
como um rio a ir
sem cor
sem margem
sem fio condutor
(1995)
CANTAR
Do jeito de cantar:
canto – a voz é pera na geladeira
pelo parado no ar
fio de brilho no brilho da luz:
engano de sombra
coisa quase de ficar
Depois meu jeito de cantar é meu jeito
assim como quase andar:
camelo cansado em busca do lar
luzes de enguia no estômago
lupa pra ver melhor
se não dá canto (é o jeito)
pra disfarçar e destacar
pequenas coisas que atravancam
todo dia dia lento
Puseram um véu sobre o piano
não era véu era vento
Fui tocar e fiquei mudo
na sala minha voz fez ladrilhos de estilhaços:
latidos
Fui pra rua esperar espiar
expiar o silêncio
(1995)
As horas são tantas na esquina
Resumo voos num gesto
Há escafandros para penetrar o tempo
As carpideiras parem rios de mênstruo
Os corcoveios da rua tremem caminho
Ando o pó e a sílaba da cidade
Há mel nas escadarias para aguçar os tapetes
As estrias do dia rebatem na cortina
As trilhas do azul gemem no azul da noite
Penso entre colunas no degredo de papel
Há ensaios tontos nas mãos que lavo
As veias do sul se abrem a gerar esquadrias
As mulheres são maçãs alteradas
Os homens são vinho vencido
Os garotos são talos tensos
As meninas são abstração manchada
(1995)
QUADRO
Que a música me amarre ainda neste resto
e me fixe no chão
Depois podem nascer as correntes
que devastam o ar
e eliminam as épocas de seu lugar
Meu lábio supura sol abrasado
Dos olhos pinga noite camuflada de medo
(1996)
Junto as mãos à teia
treva bruma lápides
Em cada redondo
há hastes
segurando pérolas
O minúsculo brilho
salta escorre desce
perfura a terra desce
uma gota sorvida
no instantâneo de ficar
(1996)
ANÁLISE
Todo dia mancho
a mão em tintas diversas
percorro com os dedos
o rosto no espelho
Ignoro o enigma
e quando a madrugada explode
sou outra vez duas vidas
mescla de tinta e traço
um rosto muito baço
no espelho fosco sem jeito
de revelar coisa alguma
(1996)
SORTIMENTO DE TONS
e sob a pele a nervura
de cada osso
Uma aranha de luz
dança o arabesco
de minha carne
me tece em dom
som de oboé
violoncelo doce
Da grama vem a cor
gesto e projeto
de manuscrito
O vinho borra
a intimidade inesperada
e este andamento
rebrilha no cristal
invertido
a dar vazão ao céu
razão ao mar
(1996)
QUADRO III
Meus ninhos voam com o vento
Sobram sombras tontas
e um sândalo de quem passou
Que fazer?
Entre as mãos a imagem não cria raiz
Rui a cada palavra
o filete frágil do perfil
sempre a se diluir
na amplidão do improvável
(1996)
DOIS
Penso num ponto:
geografia do vão
momento caligráfico
de repor a semente
no chão
Penso no gesto:
geometria do sim
movimento oligárquico
de encenar a vida
(1997)
BANDÔNION
Garras ciciam no espelho da noite
Silêncio – reflexos – monstros
A sede de ar ainda paira
habita a rusga do barro
Breu – mofo – mosca
A teia de reflexos margeia o som
e a ciranda de cimento acende
a gota
A gota cintila – hiato de lua
O quadro cai da moldura
O rosto estampa o tapete
Breve carta Beiço de sangue
A manhã se antecipa ao seu clarear
Como os passos bêbados
retraçando a calçada
no último risco do néon
(1997)
VERNIZ
Verde névoa
em rua cinza
ao primeiro sintoma de luz
Janelas escancaram ruídos
no fluido dos nadas
Outra vez canta a boca torta
Outra vez a voz submersa
e a música inconstituída
Que direito tem a carne a mais?
Que segredos as curvas que se caminham?
Que azedo é este sempre travado?
(1997)
INSTANTÂNEO
Inesperada ave
rompe o azul e a noite
De suas asas
uma gota de som
fermenta na cidade
preparando a luz
e a lucidez do voar
(1997)
ORQUESTRAÇÃO
Que posses espectrais
gesticulam os olhos
coroando-os com saliva e sal?
Que corpo mantém
acesa a madrugada do ócio?
Quanta metamorfose
é luz no silêncio
do único túnel escancarado?
Quanta conversa
anterior ao tempo
indefiniu o silêncio?
Que passo de ontem
deste mergulhador insone
tresnoitado de todos os mares
em busca de rotas
sem saber que a Terra
é um simples projeto cotidiano
– traço em branco –
rumo de nau desgovernada
porque naufragar é o que salva?
(1997)
FESTA E CONVIVA
Poderia ser imagem de barro
destas com muitas constelações retidas
um gemido congelado no oco do ar
resguardado em cavas profundas
ocre vermelho nuance
espectro de licor espesso no cálice
quando tomamos a festa
interferindo em gestos e sons
ou um canivete sem acompanhamento
gesto de dançar no ar
a cada passo recobrar o pássaro
e escancarar as penas
na escadaria os sapatos soltos
De madrugada é sempre vidro
andar nu
cantar o corpo torneado na madeira
no cristal de néon
na substância adstringente
Os meneios espalhados pelas quinas
para o vento recolher o bolor da foto
a reentrância do camuflado
a instância derradeira
daquela palavra
Poderia ser imagem de vapor
destas com muito ramo estirado
um cavalo paralisado no esgar do salto
e no gozo de ser cavalo
porque o tempo é só cavá-lo
(1997)
Onde os caroços sobram
a fruta eriça o sol
A luz apascenta a forma
gesto esparso sem ser
de estações divisoras
de anos homens mulheres
Os passageiros são crianças
a divisar paisagens
e fantasmas ocos
na região das paredes móveis
Permitem às portas
a abertura de viagens
para organizar os sinais
Não sabem ler nem andar
não ficam mais transparentes
Passam pelas vidraças
como morros e vales
decantados em semiton
Repousa nas mãos
um pássaro solilóquio
pendente de monólogos
que apenas dança
entre uma sílaba e outra
da viagem que foge
em trilhos do infinito
As paredes deslizam
e contêm o urbano
a fugir entre as asas
de metal e madeira
sorvendo caroços
para a viagem prosseguir
mais ou menos em paz
ao nada transparente
da alucinação
(1997)
PALAVRA
Minha ave amarga
ronda tonta a mesa
Depois de bater pelas paredes
não resiste à vertigem do papel
Pousa leve no tom azul
como o monge
que decifrou os peixes
Transparente de si
deixa as nervuras à luz
E perceber é possível
a difícil trama de sua virtude
Remexo-a com sofreguidão
preparando a massa pra textura
enquanto muito longe de mim
outro voo apronta trajetórias
(1997)
Quero escrever
até que a morte
me separe de cada verbo
e em cada verbo
reste o nervo
e em cada nervo a erva
em cada erva a ave
arribando de volta
no bico um ramo verde
pra anunciar que a viagem
recomeçou
(1997)
A BOCA
Uma gota
basta uma gota só
para o incêndio começar
Desmanchar a boca
seu início
no que tem de mais cru:
a sílaba
o verbo eriçado em dado
de quase queda
Basta uma unicamente uma
cama de som em fúria
sax alucinado de luar
pela estrada
pelo dom do cimento
Mágico e efeito de olhar
a boca a dizer: a sílaba
um verbo em seu trono lento
verte osso e veneno
Dizer um trecho
mais que ajuda de esfera:
corpo
coração hiato
sangue rente
de repente a derreter a boca
oca cimitarra que corta:
a sílaba
um verbo de demo de deus
dom som tom
corte fora do lugar
o oco: boca
vegetália úmida ocre rubra ruiva
(1998)
DIZEM QUE OS GRILOS VIVEM
Eu posso tirar
de cada aresta
a escama da palavra
Depois voar
beco
berro
jorro lugar
De
pois
de
por
re
por a penugem aflante
do ar
no lugar da sombra
eco
elo vazio
Ela irá coar
ecoar
o pomo da luz
(1998)
VÉSPERA DE CARTA
Saber colher noites
separar escamas
reter estrelas
manchar a mão na escada
o rosto na pétala
a rua
com tanta frase desgarrada
reter no corpo o corpo
e se prometer viagem
aragem de ir
(1998)
AIA
Mas
por estranho dom
a luz que sem efeito resguardo
é sombra diluída
monstro pacífico
louca companheira
veneno sutil
nunca me abandona
o outro lado de minhas dobras
meu escuro
escrava de mim
(1998)
C
Vou fazer assim a sombra
dançar silenciosa
em cio
entre o suave lugar
e o lento voar
de asas e sementes
que se somam e saem
sempre como serão:
serenos acenos e cenas
subtraídas da mente
metamorfose demente
de cílios cérebro sexo
espécie de meta de morte
e serpente
o absurdo cenário que assanha
a senha final:
de sentido
nenhum sinal
(1988)
COROADO DE MERDA
Vitória régia
Vitória prévia
Vitória média
Poder cantar por mim um sim
sinal de vida
sinal de ida
sinal de midas
ouro em pó furor carmim
Eu vejo a hera
eu vejo a fera
eu vejo a era
do sol torrar meu capim
Me deixo agora
cantar de novo
à beira noite
no torpe corpo
de nenhum festim
(1998)
MANHÃ – UM TRAÇO
Sonhar com um barco
e com um dente preso
dentre os pomos da maçã
Abrir no buraco o arco
e ter um ente vivo
atrás dos poros da pele vã
Partir na arca do mar
e bramir no ventre verde
o cerne quente da manhã
(1998)
A VIDA POR UM PIO
O pó gemendo na sombra
confundem os pés e os pios
Rios submersos emergem
a pontiaguda vara da manhã
Rostos retalham cortinas
depois que as xícaras
amarfanham o sono no marasmo
Um som oco substitui o trabalho
Alho e óleo na boca
corcoveiam grandes animais no estômago
Tudo breve brame
Breu nos beijos
Deu nos beiços a doenças – vazio
Pio- não palavra
Pó – não substância
O rosto esplêndido é o azar do não-tido
mantido o hiato fatal: lá cá
O rosto adorado é ídolo partido:
não se toca: é letal
Por que maldito?
Nenhuma explicação avança
Fetiche não se retém na unha
o breve contato de um abraço
disfarce de cópula não havida
porque neste amor não há vida
(1999)
ARANHA NO VIDRO
um furo no grito
a pena arranha a garganta
a aranha sobe o vidro
escorrega esfacela a penugem
da borda da vidraça
parte a luz congelada
estilhaça o aço
transparente
estraçalha a aragem
a aranha desce revela
a teia o cintilar
cicio translúcido
líquido pontilhado de pólen
fala em fio
une o som e o gesto fino
o hino vagar polido da pata
negro adejo
a matéria fosforesce vétrea
o pingo o pus a luz vitral
(1999)
BELO
Tudo reluz
porque seduz
o pus
A verve
o verme brame
A luz conduz
o som e o tom
E entre pautas
patas fatos
teu fato carne
à glória induz
Repasto doce
reparte o ocre
o rubro o aval
Navio de arte
me singra o sangue
consome à parte
meu facho canal
A tua beleza
esponja nua
suga o éter
de meu carnaval
(1999)
MISSIVA EM CIMA DA MESA
se saberes de mim importa
rarefeito feito véu
viajo em mim troglodita
desfeito em hiato breve
ave de rapina empunho
opus do degredo no meu segredo
obus que carrego secreto
eu exterco do meu ego
ergo como um falso cadafalso
a voz o oco o breu o meu
hirto de sombra tombo e arrombo
em rombo o último sonho
só estou pra ti e tu não há mais
desfigurada presença na sentença
de sempre doença: tu sedenta ausência
(1999)
COISA NENHUMA
Se você lesse
todos os livros que te amo
se aninhassem em palavras
que te penso
se olhasse os caminhos que adivinho
rotas noites deste lugar
se você voasse os navios
que invento e o mar
que onda e balanço rasgam vagas
se você regressasse os versos velhos
voltam teu rosto
se você andasse os traços
que estou devagar
e moldo enquanto insônio
(1999)
CAMÕES É O TOQUE
Temos alguns nomes
sobrando nas ramas de nossos braços
Alguns riachos sementes
entre as pálpebras
a adormecer um segredo de vida
e ficar
ficar varando as trevas das palavras
Temos pigmentos e cores
sobrenadando a polpa dos frutos
Ainda corremos em nuvens
segredando a pelúcia da planície
entre vales velhos de extração
Temos aritméticas várias
de panos enluarados com que tecer
vendavais de adormecer signos
presos em sala de palha que espera a tarde
Paixão é pó e vinho veia e ardência
ainda que mais não diga
por não parecer correto
falar de tanto amor
quando tão pouco é o corpo
(1999)
AMOR
As neves
as lavas levam
As lavas
as neves lavam
(1999)
RETRATO QUE TOULOUSE NÃO FEZ
chove na noite
da janela
o húmus ferve
febril feito um órgão sob lã
as gotas
os pingos
as coisas tantas
tontas na vidraça
esparramam a cor
concentram o breu
na lombada dos livros
tigres vampiros fossas
dias noites pássaros escuros
mar sem o absoluto
os vidros espessos
espermam na mesa o remédio
caneta lúcifer navio pomo cola foto
cão ídolo recorte horóscopo
atuar de modo constelar
chove direto no paralelepípedo
e a flor não se amassa
A NOITE É UM MEU E SE PERDEU
(1999)
INSTANTÂNEO ENTRE SOMBRAS
Garras auréolas e pardais
fremem no fio do punhal
e um silêncio de sombras
cobre as cores
Destaque-se a moldura:
cera amalgamada com terra
e a gaiola azul boiando no abismo
Varais de silêncios
com digitais quase rubros
fervem sob os tapetes
O punhal desce corte reto
correto no prumo e na cisão
Esguicha a luz
e no claro as sugestões se apagam
(1999)
PRIMEIRO PACTO DA CRIAÇÃO
No primeiro dia da criação
sujo de tintas
de sons de geometrias
tonto de cosmos e retocando um ou outro tom
Deus sentou-se à mesa
ofuscado pelo branco linho enluarado
Na outra cabeceira
esperava o Diabo
Olham-se balançando a cabeça
medindo as mútuas dimensões
Então gargalham zombeteiros
invencíveis e fazem o primeiro brinde à criação
Estava assinado
o projeto de nossa condição
(1999)
VERBUM VERBI
As palavras têm pelos
na sua polpa de ser
Revirá-las é cortar o néctar
descobrir o veneno de beber
(1999)
PASSAGEM
O rio tange suas margens
até que uma ponte as una
num mesm0 traço
CURITIBA
Os rios
submergem
de frio
FULGOR NOTURNO
No umbigo da noite
um telefonema me resgata
– mas é sempre mesma a vida
que não ata nem desata
CIGARRA
Morta
a cigarra na pedra
reluz
brusca intermitente
no seio da hora
o silêncio do meio-dia
Morta
a cigarra é vítrea
corruptela de asas
(não levam transparências)
nenhum volume
nenhum som
Morta
é o parêntese interrompido
inesperada viagem em mala
deixada no porto
no pátio
na imensa sala
***
A faca corta rígida petulante
Rasga espicaça estraçalha
invasiva
Corre célere aos riachos de sangue
Ali encontra os ossos
Executa os ossos
esfrangalha
Laboriosa investe seu fio
contra os mitos – revela-os
de palha feitos
A faca sabe tudo
Assim talha o fruto ainda há pouco
sensaboroso
agora maldito
A faca sabe
A faca amputa reduz abrevia
Na veia do cântaro velho
a faca afina-se
comprime a veia
destronca a flor
cuja pétala nem nascera
A faca é má
Sua natureza animal
rejeita o ar
tosquia o gosto
trinca o ressaibo do sentido
A faca má vil purulenta
agachada encolhe a fibra
rasteira prostra o alento
horizontal anula o vértice
***
A palavra não existe a priori
Ela nasce do corpo
do corpo no corpo
do corpo do corpo
Brota um fluido da fricção
ele se solidifica no ar
Eis a palavra
uma tabuada de gestos
uma cabala de suores
uma cantárida de apegos
***
Kafka sai do bordel
Nada foi bem esta noite
Contempla um rapaz que passa
suas coxas
seu traseiro saliente
Kafka pensa:
se por um processo
de metamorfose
eu adentrasse este castelo
estaria pronto meu veredito:
rasgo a carta ao pai
descubro a Amerika
longe do mundo dentro de mim
***
A planície se distende
do meu apartamento aos
prédios vizinhos
Como ponto de fuga – o vazio
vazio pleno de talos viçosos
talos de curta duração
talos encarnados
talos que deveriam
provocar erupção
Em sua geometria precisa
rijos e rígidos
atordoam como tonificantes
dispensam a digressão
rasgam cuecas
apontam sem conexão
com meu apartamento
Insolentes na delectatio amorosa
intervêm na disciplina dos arpões
arfam entorpecem sujeitam
cada cado do meu cadinho
Com arranjos pontuais
voam por aí – o ponto de fuga: o vazio
Vazam seu visco nas trincheiras
vivos vãos voluptuosos
vêm vão vêm vão vêm vão
Vão ao vão de tudo em vão
As planícies de encolhem em dobras
Suspiro meu laconismo
Minha serenidade turva-se
Não há sereno
há gosma descarga secreção
há fluxo destempero exsudação
há leite pegamento gomosidade
há geleia muco densidade
há melaço albumina caldo
há colostro
– conta sem saldo
***
O menino corre na calçada
Mochila vermelha nas costas
Corre tropeça cai
Mancha rubra entre pedras
Mochila
ou cara rachada?
***
A música leve e serena
manobra inflexões
pelo tédio da casa
A luz desaloja os ângulos
preenchidos pela precisão
de cada nota
Há ressurgimentos imprevistos
desenhos nos tapetes
criaturas de graça e luz
esvoaçam pela vigilância
da tranquilidade
O caos remove-se
por linhas voláteis de arpejos
Estar neste outono a bater
harmonias na vidraça
é estar com a corola da tarde
entre as mãos
Mescla-se o inebriante
com a floração de tufos
Haverá horizonte exato?
***
A manhã muge e morde
os meandros do movimento
e a memória malsã
de milhares de manhãs monótonas
mata a mata de matérias
minguando o memorável
Menino de medos mil
da mãe madrasta
medra na manquitolagem
de metáforas medonhas
marejando no mercúrio
da mera moagem de suas medidas
pelos mantos mantidos
nas mãos mentidas
Veias vãs a vagar
artifícios de ares ardentes
que ele mantém com os dentes
Menino de mãe megera
mede-se em merda
e mergulha em mar de medo
***
Para escrever não me despojo
das palavras
Enfio ferro pelas unhas
mordo a madrasta pelo rabo
espalho livros jornais recortes
pela mesa e sugo e roubo
Bagunço tudo
nos tonéis de lápis e canetas
que minam meu entorno
Olho o olho de vidro a me passar
telegramas de tempo nunca meu
Memorizo instante de abismo
Sei que daqui a pouco já não dá
Um gole d`água e afogo as moscas
Elas zunem no estômago
Estripo o fígado com memórias
Rodo a andar por cômodos
de casa sem mapa
Invento que sou eu mesmo
Me atiro na cal
com máscara refeita
em café e cigarro
cigarro na tripa da página
Espio pela janela e constato:
o mundo permanece lugar não-meu
***
Nenhuma palavra a mais
Nenhuma a menos
apenas a exata
de corte oblíquo
para que teus olhos
a recebam com elasticidade
e me devolvam
o aviso fatal a qualquer náufrago:
há uma ilha próxima
***
Você me entrega
o cristal das horas
o núcleo de frutos que amadurecem
na borda do tempo
a polpa eriçada de presença
Em você a súmula de andanças
e quando recapturo a imagem
os enigmas perdem os caixilhos
Abrando-me na absorção
de que viver é inevitável
Nada de tributos
pagos ao diabo
Minha finitude alarga-se
Saber não dói
Apalpo a sintonia
No abrigo precário
edifico um jeito de ser ereto
Estaremos desnudos
para dilatar na hora
o torno de cada minuto
o tempo que não me houve
***
A rua deforma a cidade
desmonta passeios e sapatos
escalda pelo contrário a resignação
de quem se decide
dar uma espiada por aí
A chuva é extravagante
Unta de umidade
o invasivo da presença
Os quadros se desprendem
de molduras não acabadas
Os poemas escurecem
a espinha cervical
Sempre há farpas de falta
e o desatino do assombro
Se todos se recolhem
ficam meio de viés
Pode apostar
entre eles não há pios pipios
gestos alimentares
de quem saiu da arca
Nada agrega no verde
cenas contadas
quando ainda havia sol
***
Agora me pergunto:
a fenda se cobre com o quê?
Que sentido têm olhos rútilos
horizontes de pulsação e magnetismo
chamando o mesmo ritmo
A fenda da embriaguez
em que bailam olhos de mina
navegam brilhos em incubação
Estar é visionário apego
de ir no torso de idéias
Cada grão de escada
ao não-preenchido
Navegante de mochila
a ruminar sobressaltos
diluo-me no fluido da entrega
Dois olhos de mina
Dois olhos – brilho reto
Assim: antes e depois
O núcleo da fenda vindo
O estouro do halo do alarme
O aviso desproporcional à demanda
Na finitude do perguntar pergunto:
somos abrigo ressonância sanção?
***
Os prédios vão tocar o entardecer
As janelas úmidas já foram armadas
Aqui embaixo
carros e gente – calçadas
O ânimo estremece nas veredas
Ninguém olha para ninguém
As palmeiras – como o vento quer
O espaço barulhento
e a intimidade secam
As praças nada salvam
A morte está ali
em cada ferrão de carne
prometendo ilhas de chegada
***
O oco tem patas de pelo denso
É em si um deserto
No centro reina o nada
Diante dele o homem
raio inútil – luz não calor
Homem o animal oco
Um ondular de medusa
No seu costado
marcas de vazio manejado
O oco é potência
a usina do pesadelo
o agreste das mãos
Sem fecundidade
o homem no oco
a vontade é retalho
Irrompe a noite
o tatear da floresta
a turbulência do suor
O homem apenas necessita
do convite do veneno
***
Dor – um elefante pontiagudo
estúpido endereço de casa sem ninguém
A gota pinga
derrete o aço das entranhas
escorre pelo pé
dissolve o piso
Sem chão
precisamos nos agarrar em algo
Algo não há
Estremece o núcleo
A dor insiste com seu ácido
rói cada osso
Não mais nos habitamos
Necessário permanecer aqui
Se o ar foi mastigado por formigas
não importa
***
A ausência extrai da casa
o sumo o sentido
confirma as paredes
Os livros com seu discurso
se esparramam
são mariposas de esqueleto meio aéreo
Nada figura nos quadros
Sua nudez levanta do chão o pó
A marca da ausência
está no telefone
A mente extrapola o corpo
na armadilha tosca
de silêncio em tijolo e argamassa
***
Ácido
o acinte da garra
na ferida em riste
Por trás da máscara
o corte insiste:
refazer em breu
o suor de flagrar
pelas esquinas
Orfeu reinventor da paixão
No acúmulo de fendas
marujos de faca célere
A combustão da raça
ofusca o sol
Rapace o lacaio
das tramas conjuga
bordão e vício
Nada resiste
ao som avaro
Dissipa-se a casula
a esconder
forma tosão apego
Ontem mais que agora
a vida erra
o já era
***
Flui o cotidiano em patamares
que se inventam
Fantoches gritam pela vida
Há um recolher de peitos
que se inclinam sobre peitos
Tanta ventania escancarada
nas janelas rubras das têmporas
Meu falar é voz muda
despenca por paredes
Flui o cotidiano em cada passo
Duendes se avizinham
com avinagradas palavras
Estas paredes me ouviram
a destoar do branco
São abismos de som sem nome
Flui a hora – negação do tempo
Nada se afigura no meu escrito
***
Há o caos
O visível e o invisível
O aturdimento dos sentidos
Um canto de sortilégio
na inutilidade da paisagem
O relógio congela sua hora
A ópera do mundo abre as cortinas
Ninguém na rua
O magma escorre pelos braços
esculpe nas mãos um clamor:
a improbabilidade
Resíduos de som afrontam a janela
Inútil paisagem
Borbulha nos olhos o inviolável
contato com outros olhos
O ritmo gago do néon
emplastra o quarto
Ressurgem lençóis amarrotados
A mancha a corrosão da lembrança
Alguém range os dentes
contra a desrazão da porta
Cadê a escada?
***
Nos gestos de sábado
um barco flutua
no horizonte
Seu costado mescla
incursão ao longe
e um curto desterro
Na rosa dos ventos
o barco coleta hiatos
do tempo de memórias
Herdeiro de viagens
em torno da Terra
ele intervém com gana
na mescla de nuvens
a toldar a amplidão
De seus estames florescem
papoulas em tom rubro
com estrias em azul
O homem amplia-se
na sanha do conhecimento
***
A manhã ressona
sob mantas de pelúcia
Ao esticar os pés
eles escapam das cobertas
Um passarinho ligeiro
pousa sobre o dedão
e bica-o
A manhã resmunga
sacode o pé
O passarinho salta
Depois volta ao dedão
A manhã agora recolhida
vira-se de lado
e recupera a paz
***
Esquadras batem no seu peito
As antigas rotas voltam à tona
Ele bebe a vertigem
Nas ilhas pensadas
a população tem o coração
devorado por jacarés de vidro
Acossado por gânglios da derrota
ele se vê sem a clausura dos afetos
A erva de seus braços
desce até os dedos
Pinga que pinga
suco do seu interior
Nunca soube quem foi
Acossado pela identidade
cadê seu lugar seu porto no mundo
Queria apenas estar recolhido ao canto
onde pudesse com sagacidade
reconhecer os marujos
que passaram por seu navio
Talvez pudesse convidá-los
para um conhaque
***
Toada de pedra
sobre os muros da casa
Toada de esquinas
Ângulos enrijecem-se
Moldes de brasa
O ar endurecido
vasculha os cantos
Cada canto descarnado
acelera o empedramento
A casa reta não oferece redondez
Abriga soluços de ferro
e o ferro se parte
em fragmentos
A câmera que vigia a morada
tem um lodo ressecado e tardio
Não permite que outros acessórios
sejam vistos no testamento
de lavra petrificada
no entorno do lugar
***
Tenho sobre a mesa
uma série de anotações
Vem a tentação Dadá:
que tal embaralhar tudo
e ver no que dá?
Há também livros de poemas
Abro-os ao léu
Deles recebo influxos
Influxos?
Literatura não é pilhagem?
Então saquei-os à vontade
Sugo daqui
Chupo dali
e eis meu discurso
***
Essa coisa estranha
que morde por dentro
vadeia os véus opacos
e rubra rubra
embrenha-se pelas matas
rasga a penumbra
deixa aturdido
A coisa estranha e trapaceira
enreda-se sem franquia
e com seu horror paciente
fisga as fianças em partículas
A aderência à aspereza da vida
se vai em surtos
Fica o intumescimento
atarantado visguento molenga
A coisa estranha e intrusa
conhece bem seu lugar
Palmilha com precisão
cada palmo de chão
já esburacado
Rompe golpeia entontece
e o figo fica ressequido
***
Fecundo teus olhos
com a poeira da tribo
Se sou multidão
Se sou outro
Se sou múltiplo
pouco importa
Rompo as fronteiras
com o lado de fora de mim
Não me reintegro
ao caos do mundo
Vejo alguma fertilidade
no ato de te ver
Os saltimbancos descem
a ladeira da madrugada
Sou hóspede trapezista
nesta cidade de tabus
Aceno ao interdito
rompo a casca
roo tuas unhas
para chegar ao sangue bom
Pelos bulbos desta presença
entro em rotação
Vejo o espelho
Eis teu teorema
montado para não me resolver
Há uma labareda de sândalo
no centro de mim
O mapa degolado
não te localiza
Se sou lacraia ou peste
pouco se me dá
No ato de te ver
pelo menos sei
que a vida agirá
***
Tudo de vasto
era fímbria
No núcleo do papel mineral
a borboleta dilacera
os fluxos do canto rouco
O predador ofegante
vinha postar-se ao léu
Soberano ordenava
coisa da terra ao céu
Nenhuma hesitação tinha
para impor sua presença
Os livros abriam-se em fungos
As palavras desandaram
Como tudo era fímbria
a ousadia do incisivo
compôs trigais de feno
numa bruta cacofonia
Assim a fronteira
entre aqui e ali
desfez-se em intermezzo
que ninguém mais entendia
***
Tá tudo inverno
na peçonha da pele
Hibernam retalhos da memória
e não se sabe o que fazer com eles
As taças tilintam
de gelo nas comissuras
de dedos sem chegança
Tudo inverno de casaco
A esbelteza dos corpos
some feio no portal
de roupas grossas
As mesas murmuram
sob sopa de legumes
Nada importaria o inverno
se seus golpes
não escondessem as saliências
que gostamos de apalpar com os olhos
Tá tudo ácido
ao longo do fio do frio
O inverno é besta
aposenta a carnalidade
encolhe os juncos eriçados
dobra os pelos dos púbis
recolhidos em sexos mudos
***
Não apenas sentir mas vibrar
no infinito interno do corpo
Num átimo reaver
certo rosto – teu rosto
ardente e luminoso
boca besuntada de morenidade
um pouco além dos olhos
Não somente sentir mas captar
na cava mais profunda
o ponto exato de teu corpo
que em neblina se embaça
Teu corpo que faz deste destino
um parêntese em aberto
a filtrar saquear o ponto exato
Ali onde vida e paixão
investigam o sentido
de estar em vida e paixão
***
Amoras mamões maçãs amadurecem
em minhas mãos
enquanto ouço Morrissey
Lembro de uma camiseta verdolenga
do The Smiths que ganhei
numa loja de discos
Semana passada
um aluno disse fazer música
– na linha que você gosta professor:
The Smiths Joy Division…
Ele me contou o quanto admira
as letras desse povo
Me recomendou Radio Head
É bom transitar por esses mundos
Se quando jovem
dispusesse de tantas portas
quem sabe…
e otras cozitas más
***
Trucagens desvalimentos
flamejantes de rubro candor
no insulto pela remissão
da errância do horror
Que a perda do corpo consiste
num entorpecimento banal
Não é o jeito que irrompe
com a cólica do carnaval
mas o tédio que sinaliza
para rugas de ser e alma
Na precisão do revés
o ser que não se acalma
De junho nos despedimos
com a granítica febre terçã
as duas mãos segurando
a tonalidade da maçã
***
O que eu preparo é a mim
entorpecido
Não desses gases
flutuantes que a gente inventa
na rua em bares hotéis
e que entre a pedra e o pão
têm uma lisura –
não dessas ruas bares hotéis
que a gente inventa
Refazer um lar –
o que eu preparo é a mim
obtuso
desarmado
sem a energia centrífuga
que engulo
A vaguidão que me habita
quem duvida
em dizer que é meu tom?
A respiração das coisas
circunda floresta muda –
esse verniz que me brilha
quem de mim faz delírio?
quem me dilacera?
Febril fragilidade
em amarelo cintilar –
quem de mim vagueia?
quem no seu ser
não é?
Que campânulas me reparam
no que de mim preparo
em insulto de normalidade?
O contraponto é por nascer –
e enquanto isto perdura
desconfiança ondulações –
e de mim tudo se esfuma
nesse seriado de trevor
(Releitura de Lúcio Cardoso)
***
O piano range na madrugada
A voz de Rod Stewart
é insulto a qualquer sombra
Ouvi-lo agora é garimpar
amoras entre sons de estrada
Não há detritos lá fora
O mundo foi investigado
Alguém concluiu: é bom
Toca o trompete
A versátil voz destrona dilemas
A tônica do disco
american songs
faz o cinza da hora
capitular entre escoltas
de harmonias
Every morning
lavra o estanho de bules
café fresco
um cigarro depois
Tangível na configuração de som
Rod nada banaliza
A voz faz um travelling
sobre a biblioteca
desvenda os segredos andarilhos
e vamos desbastando a maravilha
passo a passo
***
O lacre do dia se abre ao vento
Que te incomoda nesta história?
Labirintos que te preenchem
de incertezas?
Talvez descubras o sentido
roubado por alguém
Estás monopolizado pela
permanência da transição
Nas paredes internas
algo te deforma
Na rotina há pesadelos devaneios
pedaços de arroubos
O que armazenavas?
Teus ímpetos descarnados
evaporam das mãos
Um corpo à sombra
é cálice – segue sem nada
Nada de chance de recuperar o dia
As horas se rompem
eis o primeiro vacilo
(Releitura de Lenilde Freitas)
***
Que fazer dos nutrientes do dia?
nesta delicada solidão?
Adolescentes – deuses pagãos
têm sua dubiedade estampada
em gestos lânguidos
Buscam leviandade
no insensato no remoto
no desconforto do sim do não
Tudo acontece na fronteira
Mais que predadores – a
barganha entediada com o
brilho que deles jorra
Tão cegos
Brenhas cutelos interlúdios
Dias de pindaíba
A renda das acnes
desvenda a esfinge?
Julho retido nos casacos
A beleza não foge a galope
Faz parte exaurir-se no alarme
De uma janela salta
o temperamento da distância
Ver dádivas no enigma
a fluidez perpassa os dedos
Bichos da cidade
parte do lamaçal acústico
A vivacidade a torná-los
ébrios de si
Tecem a metamorfose
ignorada em seus corpos
A exasperação arde
na habilidade de ficar de pé
Antevê-los mortos
Sentir a resina do seu não
Há apoio precário
xadrez em leque fechado
incerto da energia
Ser ou não ser
é o terror de espuma
carvão langor
(Releitura de Lindolfo Bell)
***
Que fazer?
Rasgar a roupa
ou mantê-la em gesso
perfurar a pele
ou decorá-la com suor de cavalo
Esticar os dedos até Macedônia
Encolher o corpo
e alcançar o próximo mar
Desjunte
Se retirar da língua
suas palavras
alguma coisa trava
Se eu mantiver
sua integridade
a frase torna-se torta
Nada sai voando ao sentido
Se desbastar a árvore
ela nua gritará de frio
Pode encolher-se tanto
até virar semente
Um pouco de embriaguez por favor
A roda é este dia animal duro
até a hora em que a febre apodrece
e de uma vez por todas
o corpo se esvazie
A pedra dos pés
é recheio do caminho
Nunca caminhar
por roteiros tontos
(Releitura de Flora Figueiredo)
***
O fundo da tarde
guarda barcos de silêncio
Neles jovens marinheiros
se despem para beber o sol
Expõem na pele
a geografia de viagens
sem gramática
Nas pálpebras cerradas
emudecem outras noites
com vivência igual a nada
Com arrojo
eles revolvem a tarde
e encontram razão
para a languidez
de seu deserto
***
Tudo em volta
é objeto pontiagudo
corpúsculo lancetado
garra cortante
Ao redor a broca punça
a pua anavalha
a sarça adelgaça
A pele afiada geme
sob o cutelo
Os olhos serram-se
ranhuras de arado
No entorno
cada espiga é ferrão
Sobressai na forma
de ponta com gume
certeiro ao dardo amolado
para rasgar em agulha
o embicado caroço
da sensação de ser lança
O derredor é descampado
com furadores de prontidão
e se eriçam na contenda
Estiletes em figa
lavram a carne
na condição de estrias
O espírito da verruma
rompe e arreganha
a esfaqueada esperança
de desimpedir a passagem
O ar nega-se a brotar
Escalpelado transpassa
a torre de rasgões
arromba as unhas
e na voragem de mina
escava os vasos dos dedos
Ali bota ovos de cutelos
Os punhais escorraçam
os talhos e encarnam
no endereço mentido
a asperidade do ser
que despolido vai ao caloso
e desgrenha o último sorvo
da lima em cilindro convertida
A incisão se faz fatal
Nada ostenta macieza
Cada arranque engrena-se
no estrepe de facas mudas
silenciadoras do espinho
atravessado na garganta
***
Piano da noite que se fecha
presença líquida de uma espera
Todos os silêncios dos homens
são fragmentos de uma quimera
Espalha teu sêmen nas ruas
de corpos que por fim são ternos
doce de uma língua de sombra
feito passos pela lã do tapete
E depois que as luzes se apagam
asas no tempo a avisar
que o dia enfim está a acabar
porque nada resta de lembranças
nas mentes desejando se recolher
***
Na figura de Paul Éluard
vejo árvores orvalhadas de sol
Discordo de que sejam retas
Não tenho um sol ao qual
dar seiva em qualquer espécie
Para mim as folhas não são marmóreas
Gosto de tocá-las flébeis
sentir sua verdura
reclinando-se para o chão
Nelas parece haver ninhos
que só o calor de meus dedos desvenda
Me é difícil ver o mar adormecido
Aos meus olhos ele sempre fervilha
tem erupções
é um anjo endiabrado e largo
a espumar cóleras brandas
enrolar areias
fustigar nos pés a vontade de ir
Concordo que a Terra seja vertical
– este é um modo de fugir do chão
e se as sombras das árvores são árvores
não sei
– para mim são frutos à espera
do amadurecimento
***
Mudar uma pedra do lugar
Sorver em gestos largos
o ar da casa pintado de branco
Blindar o peito para
a ausência não entrar
e com destreza
furtar-se ao bate-estaca
Que assombroso embaraço
A garganta comprimida
por varas noturnas
e as mãos aéreas
na intransigente busca
Não há único fio no lugar
Descompasso de delinquente
em fervura que converge
para a brasa na qual se assam
os peixes da alma
Cada compasso irregular
De dentro comprime esta história
de quadrados rompidos
sem se conquistar o círculo
O êxtase do desamparo
infiltrado pelos poros
Nada para ler
na língua do possível
Em branco
as cenas prosseguem
A semente do jejum
fustigando a atitude
do já arcado
Momento de manobra
de insatisfação
grito travado
A boca seca sem deus
O espírito fosco
prestes a corroer
a sola dos pés
Nada anda nada vai
A cabeça em castigo
de dobrar-se rumo
aos calcanhares
***
Chega a manhã
com pardais de fogo
Invade as janelas
doando luz
Tu a acompanhas
com o fecundo cabelo de noite
e o longo arrebatamento
A manhã pousa leve
sobre as muradas
acorda serpentes cambaleantes
A insônia esfarinhou-se
em sua mutação clara
A manhã domina os reinos
Blinda-se de cicios
e paira com o corpo suficiente
ao longo de telhados e varais
A manhã arrebata a claridade
de horas tecidas sem sol
Suas garras afastam a noite
e fecunda teu coração
de cautelas: o que virá?
(Releitura de Oscar Acosta)
***
Na pele do som
no contorno do sopro
a fala vem
em crespos cicios
Escorrendo pela laringe
sulcos de terra são exalados
pelas narinas
Se a fala tem alma
esta dança na palavra
material de barro
estrutura de vento
Pela crosta de cada verbo
sonda-se o muco
no núcelo armado em breu
O mundo pelo verbal é composto
em denso e aberto
Se Biéli consumido em chamas
não passa pela serra da palavra
fica-se aqui a pensar:
fazer o que com este formigueiro
bramando palmeiras
pelas costas?
***
Atordoado
o bicho come o bicho
Não há festim
nem gosto
Há matança
músculos estraçalhados
O sangue negro jorra entre os ossos
Os nervos rompidos se esgrouvinham
As presas rompem
trincham
esfacelam o outro
O outro com as vísceras expostas
ainda respira
Sorvos de arranque
O outro sempre vítima
***
O tiroteio acabou
A cidade está calma escura
Parece que as pessoas a abandonaram
– Ilusão
Estão escondidas e tremem e suam
Pressinto a presença delas
A lua gigantesca
reproduz as ruas mortas
Decalcando-o
assim me rendo a Zaniewski
***
Tudo o que rasteja voa
Nada mergulha sobe desce
nas entranhas do universo
tigres corças odores insetos
árvores copadas árvores mirradas
Cavas grutas cumes encostas
lugares plenos de gente desertos
cidades nervosas ou langorosas
prisioneiros marinheiros cozinheiros
sombra e luz pavor e alegria
as estações do ano e seus meses
a continuidade das ilhas
o pipocar dos arquipélagos
estações de trem ou rodoviárias
ruas ruelas becos esquinas
Os garotos os rapazes os moços
as visões em tom maior
as visões em degradê
as visões dos alucinados todos sãos
Tudo precisa viver e pulsar
A ampla liberdade irmã sutil
da magia de acordo com Al-Shâbbî
Na desmedida com a morte
Aqui os terrores da noite
as amplitudes azuis do dia
aqui na minha mente
***
Me pediram para ficar em silêncio
Recusar a lâmina invencível
da palavra
e na penumbra mansa
repousar em silêncio
Em silêncio desfolhar os livros
Foram persuasivos
Me mostraram correntes emudecidas
para eu permanecer emudecido
no assombroso silêncio
Que eu me embaraçasse com o silêncio
e deixasse em desuso a palavra
Que eu não falasse
Que me infligisse o silêncio
para o silêncio morar em mim
Chancelar a porta cerrada
contra as palavras
Cobri-las com o manto de Bispo do Rosário
Sem rajadas de realce
me mantivesse numa
espécie de esclerose
em silêncio de permanência dura
Sem acalentar o discurso
Que adotasse a mudez
o gesto turvo de quem não é
Em silêncio
Me pediram isto
Me pediram que na invernia
desse as costas às palavras
Açoitado por ferrugens
janelas corrugadas
grandes extensões de corredores
Me pediram
Sem alicerce eu ficaria retesado
num silêncio de corredor sombrio
Assim deste jeito mudo e calado
desatinado no silêncio
Que pelas vertentes
do silêncio eu deslizasse
Numa forma de negar-me à palavra
da mais branda à mais eriçada
e do silêncio fizesse meu lívido cocho
pastasse ali e chafurdasse em silêncio
e no insondável nada buscasse
para nada falar
negando a palavra
evitando bloqueando a palavra
Que fugisse da atividade febril
e obsessiva da palavra
Me deram o silêncio para guardar
Nos sulcos de Casais Monteiro
eu nada dissesse
num longo corredor
nem a ocasional palavra
O silêncio sempre
exumasse meu peito no seu ser
alagado pelo silêncio
Que fosse embora da palavra
A coreografia do silêncio
sua medula seu núcleo seu tutano
E todo me encolhesse
usando cachecóis de madeira
e nada soasse vibrasse pulsasse
Eu sem força adesiva com a palavra
Me pediram isto
para eu permanceder no oceano
do silêncio
Para me calar
e fosse cedrino o silêncio
Deletar o visco da palavra
a mucosa da palavra
o ranho da palavra
Se da palavra vivesse
a partir daí com ela
cortaria o vínculo
longe do artifício
da coleante submissão à palavra
na real perspectiva em abismo
Que cessasse a dança do verbal
Que não dissesse nunca mais
sem afinidade com termo nenhum
sem glosa mote dicionário
analogia associação diálogo
Me pediram para ficar em silêncio
Então este texto
***
Tenho pra mim
que vou contar meu poema
Fazer como faz o pintor
em sua tela:
ouve a tinta o pincel a forma
Cumpro a voz do poema
e talvez me cale
O pintor também emudece
no abismo de treva em quadro
Sei lá se convenço o poema
a me ouvir
Não ser retrato
Nada de dor e que tais
Ele falará de um adeus
(breve) coisa assim pra
quem se foi há algum tempo
Cifro o poema no ritmo
de pé quebrado sem atadura
Nada de rima metro de ginástica
Lhe dou a voz que rouca
é mina pra tudo
que tem fim nesta hora
Para Carlos Dala Stella
***
Escrevo: deus é zero
Nenhum lado do outro lado
Não é monarca
apenas estigma
de infância mal alinhavada
É galeria
de macacos amordaçados
Seu alaúde sem cor
é exasperante engano
a quem espera música
Na carne dele
besouros de opacidade
traçam enigmas
fáceis de resolver
Não é caminho de esboço
é beco de rapazes sem raiz
é gonzo enferrujado
a gemer para perturbar
nosso sono
Deus é nada
e cata pulga no meu cão
e sacia a ânsia deste
de ter dedos entre os cachos
de seu pelo
***
O tempo anômalo
fere as vidraças
parte os jarros
Que razão tem ele
para tamanha estupidez?
O tempo é vesgo
e voa torto
Assim não escolhe
quem vergar
Age com os envelopes em branco
passa ordenações
com plasticidade de desalento
a cada figura
a cada matéria que toca
Que é transitório
todos sabemos
Seu tópico de relevância
é o espatifamento
Trunca a palavra no pescoço
o amálgama que fornece
não é seminal
Nó e o que dá
E não desata
mutila e acossa
e incuba a morte
seu fruto predileto
***
A mancha e o sal do corpo
profundo por persistir nas palavras
do desencanto
A intimidade pública
continua a diáspora para
testemunhar o anoitecer
O anoitecer de árvores
que fazem da chama frágil
a prédica de um cartógrafo
O segundo andar anuncia a derrocada
de novo planeta
O olhar da linguagem
sobre as mãos
confirma a madrugada sem nuances
A mancha sobre o peito
nada aproxima
nem os lábios têm intenção clara
O sal do espaço acossa
certa circunstância do gesto
Renovar a hora noturna
saudando com cautela
o amigo cuja fertilidade
transforma este texto
(Releitura de João Maimona – Angola)
***
Os preços da vida
são altos não é camarada?
Estás resolvido a não pagá-los
Tudo bem
Correta conduta
Pega o rumo do Vale da Morte
Procura um túmulo em caverna
Talvez haja um terceiro dia
Te levantas envolvido em
panos brancos com as marcas visíveis
Os cinco buracos
Faz um milagre
Te transforma em pão e peixe
Comida para todos
Com a fome saciada
merecerás ser adorado
Na seita nova
serás o Momo Artaud
***
Estudo um rosto
Vejo os lagos incomensuráveis
Devoro o calendário espiralado
a formatar o tempo em retângulos
O comboio dos sinais
passa pelos olhos
Os olhos mais e mais
astutos no reluzente e no letal
Olhos matam
entortam o metal
As hachuras no contorno do rosto
reproduzem folhas de acanto
O sonâmbulo tateio das mãos
Nada de avarias para a beleza
A beleza do rosto secreta morte
Cada rosto é um alarido
de telas de Picasso retomadas por Portinari
Na luz turva-se o significado
Leio os informes e sinto
a língua amortecida
Cresce pelos cílios a hera invisível
Ela dissipa pela carnalidade
o oráculo das horas
Chegará o momento
em que estarei impedido
de estudar um rosto
Alguém colocará a tampa
sobre o meu
Alguém jogará a primeira
pá de terra
Não quero orações –
são aranhas mecânicas
Estudo um rosto
Fico estupefato –
ele não é meu
***
Velhas canções ressurgem
nas gretas das calçadas
Pena que os passantes não veem
Esmagam-nas sem piedade
Mesmo assim levam algumas notas
nas solas do sapato
A casa se enche de música
Tio Téda, a minha Lú esta querendo participar de um concurso de declamação de poesia e esta em busca de títulos e autores. Como você tem uma vasta fonte destes artigos, gostaria de saber se indica algo para ela. Ela sempre foi muito guerreira, batalhadora e dedicada, amadureceu cedo, perdendo a mãe nova, será que existe algum poema ou poesia que possa se enquadrar nesta temática? Se tiver alguma sugestão de terceiros ou de repente de sua própria autoria, seria muito gratificante.
Obrigado e uma ótima semana!
Beijos….
Maicon (Polaco)
Maicon, perdão pela demora. É a correria. Posso sugerir o poema “A mãe”, de Raimundo Corrêa. É belíssimo.